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Vou começar essa postagem parafraseando o colega Werley Machado no seu texto “Onde está a defesa pessoal no Aikido”,
postado no dia 30 de maio de 2011:
num dia desses, no Aizen Dojo, eu estava participando de uma aula “teen” quando vi um de nossos amigos falando pro outro “aqui no dojo a gente faz assim... mas na rua, faz assado!”.
Bom, não sou instrutor do ITN, mas como sempai da turma achei que o episódio
merecia uma rápida intervenção: disse apenas para ele não se preocupar com “a
rua”, bastava ele se concentrar em desempenhar a forma adequada da técnica
ensinada (achei que sermões demasiadamente longos são papel do instrutor da
turma e retomamos os treinamentos). Naquele momento, me incomodou ver um garoto
de cerca de 12 anos de idade tentando prever ou medir sua reação (ou
violência!) numa possível situação de crise. Não me pareceu o propósito do
treinamento despertar esse tipo de questionamento por parte dos seus praticantes,
sobretudo uns tão jovens.
Esse texto que compartilho hoje me chamou a atenção
pois começa a debatendo a eterna discussão da efetividade marcial (ou ao menos,
arranhando essa discussão) e esbarrou nesses argumentos sobre o uso do aikido “na
rua”.
Contudo, assim como ele esbarra nesse tema, me surpreendeu como esbarra em vários outros susceptíveis de valiosas reflexões: qual nossa percepção sobre as diferentes escolas de aikido? Como encaramos essas diferenças? Treinos suaves x treinos vigorosos? Ego x amor e compaixão? Busca exterior ou interior?
Enfim, acredito que esse texto trará diferentes percepções e reflexões em cada leitor, espero que proveitosas. Compartilhe a sua.
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Quando Aikido não é Aikido?
David Lynch
Aikido Journal #120
Traduzido por Arthur Brant, Aizen Dojo - ITN
“Discussões sobre a ‘efetividade marcial’ do aikido são constantes nos
boletins da internet. Infelizmente, muitas postagens mostram uma ignorância abismal
das premissas sobre as quais a arte foi fundada, na medida em que fazem
comparações com vários outros sistemas de luta.
Aikido não é um sistema de luta, mas um modo de não-luta, planejado não
para proteger ou engrandecer o ego; mas para, potencialmente, erradica-lo. Seu
valor está na promoção de valores diametricalmente opostas aquelas advogadas
para uso ‘na rua’.
Falando por mim mesmo, somente no dia em que eu tiver de enfrentar uma
situação de vida ou morte será o momento certo para provar a efetividade, ou
falta dela, do meu aikido. Eu nunca tive que usar técnicas físicas fora do dojo
em 40 anos de treinamento, assim, não perderei meu sono por causa disso.
Certamente deve-se lutar pela melhoria, é sempre um desafio tentar executar
uma técnica com um pouco mais de suavidade e elegância. Mas qual é o ponto
delirante sobre as inadequações do aikido contra o kickboxe, luta livre ou
briga de rua? Há bastante material para estudar aikido tal como ele é, sem
recorrer ao treinamento cruzado de outras artes, ou preocupar-se com qual
escola perdeu o enredo e nos deixou com uma versão aguada e ineficiente do
aikido. De qualquer forma, você só pode aprender com outros até certo ponto,
assim, não pode culpar o sistema por suas próprias deficiências.
A efetividade é conquistada a um preço e, quanto mais eu vejo aqueles que
alegam tê-la atingido no aikido, ou em outras áreas da vida, mais empatia eu
sinto pelas pessoas comuns que não possuem grande ambição de serem
supereficientes ou efetivos. No melhor das hipóteses, essa atitude é irrelevante;
na piore delas, destrutivo e deprimente.
Para ser apreciado, aikido precisa de ‘espaço’, ou seja, no campo
espiritual, na profundidade psicológica, estética, compaixão e diversão. Sem
falar do amor! (Parece haver um acordo tácito para não falar de amor em
discussões de efetividade marcial, o que é curioso sob o ponto de vista da
importância que O-Sensei deu a isso, e na sua insistência de que o amor era a
essência do aikido).
Não que a ‘efetividade espiritual’ do aikido seja mais fácil de ser provada
objetivamente do que qualquer argumento técnico. Ao menos, não há nada
garantido. Contudo, eu não estou convencido que a inabilidade de alguém para
realizar uma técnica, por exemplo, a forte pegada de morotetori do estilo Iwama, testemunha uma ausência de
desenvolvimento espiritual. O link entre espírito, mente e corpo é mais
complicado que isso.
A curva de aprendizado é longa, e pode-se razoavelmente esperar que se passe a vida inteira nela sem poder gabar-se da plena iluminação com aikido ou sem aikido. Esta não é uma razão para abandonar o esforço e praticar o aikido com um objetivo espiritual em mente, a efetividade técnica em si, já é um bom começo.
Enquanto isso, os benefícios para saúde, para mente, assim como os físicos,
amplamente justificam um treinamento sério e regular sem a necessidade de se
fixar na efetividade marcial ou se deixar intimidar por aqueles que tem essa
fixação. Como aikido é uma busca individual, a escola na qual você se engaja é
importante apenas na medida em que lhe for conveniente e é inútil tentar confrontar
uma escola contra a outra.
Para mim, a exposição ao contraste dos métodos de ensino de KisshomaruUeshiba, Koichi Tohei, Gozo Shioda, Kenju Shimizu e outros durante minha estada
prolongada no Japão me forçou a buscar quaisquer princípios comuns que pudesse
encontrar. Eu tentei manter a porta aberta para o novo conhecimento, sem cair no
bairrismo ou sectarismo.
Mas conhecimento não é sabedoria. Conhecimento é obtido por meio dos
sentidos, que não podem e nunca foram destinados a nos dizer nada sobre a
verdade do universo. É possível que perseguir mais e mais o conhecimento
técnico o leve mais longe do objetivo do aikido, ao invés de mais próximo dele.
Eu ficava um pouco aborrecido quando escutava pessoas dizendo que um ou
outro dos vários estilos que eu estava praticando ‘não era aikido’ (aparentemente,
esta expressão para denegrir circulava pelo Japão). Enquanto eu estava disposto
a admitir que minha própria interpretação pode deixar muito a desejar, me
parece incrivelmente arrogante para qualquer um denegrir as maiores escolas de
aikido do Japão com esse tipo de observação depreciativa.
As principais escolas foram estabelecidas, afinal, por mestres que tinham
passado por um longo aprendizado com o fundador, e que dedicaram suas vidas ao
aikido. Depois de um tempo, tornou-se óbvio para mim que o comentário,
"aquilo não é aikido" era superficial e sem sentido, e com tempo eu já
tinha ouvido isso de cada uma das principais escolas. Isso não me aborrece
mais.
No entanto, tal declaração pode facilmente desencorajar novos estudantes
que lutam para compreender uma versão particular da arte, assim, sugiro que
eles retornem as palavras de O-Sensei na busca de aconselhamento sobre o
assunto:
‘O fracasso é a chave do sucesso; cada erro nos ensina algo. Seja grato
mesmo por dificuldades, retrocessos e pessoas más. Lidar com tais obstáculos é
uma parte essencial do treinamento.’ (Extraído de ‘A Arte da Paz’, de John
Stevens)
Em relação à própria definição de O-Sensei do Aikido, é provavelmente
verdade que o que estamos praticando não é ‘aikido’, independentemente do
sistema de treinamento que nós seguimos. A este respeito estamos todos no mesmo
barco, todos nós temos um longo caminho pela frente, como fica óbvio a partir
de palavras de O-Sensei (citando novamente o livro de John Stevens):
‘Há muitos caminhos até o topo da montanha, mas há somente um cume – o amor’.
‘No instante em que você se fixa no certo e no errado dos seus
companheiros, você cria uma abertura no seu coração para a malícia entrar.
Testar e competir com eles, e criticando os demais, irá enfraquece-lo e
derrota-lo.’
‘Vocês estão aqui para apenas um propósito, que é perceberem sua própria
divindade e manifestarem sua iluminação inata.’
Aikidocas veteranos continuam a criticar seus companheiros em outras
escolas e alegam que há apenas a sua forma de atingir o topo da montanha,
apesar deles mesmos claramente não terem alcançado o cume.
Eu tenho considerado os diferentes sistemas de treinamento (o que todas as
escolas são, uma vez que cada indivíduo precisa criar seu próprio aikido) como
complementares em larga escala, e trato cada uma como uma peça do grande
quebra-cabeças.
Por exemplo, as bases do Yoshinkan (kihon
wasa e kihon dosa) constroem uma boa fundação para os treinamentos
orientados pelo movimento. No Yoshinkan, ficamos treinando uma técnica por mais
de uma hora e um vasto número de movimentos de solo, tai no henko. Contudo, não há menção ao relaxamento, e o Ki é visto
em termos de concentrar tudo que tem naquilo que está fazendo, sem verbalização
disso como um conceito.
O uke deve realizar um ‘ukemi limpo’ e o nague deve executar uma ‘técnica
limpa’. É entendido que não há competições, então nada é ganhado quando você
bloqueia ou testa seu parceiro. Quando indivíduos falham em atender seus
conselhos, as coisas podem rapidamente degenerar num feio teste de força, como
poderiam fazer em qualquer dojo, quando os princípio do aikido são ignorados.
Eu gostei dos treinamentos na Aikikai Hombu pela velocidade, variedade e
pelos treinos relativamente leves que são conduzidos lá. Cada sensei tem sua
abordagem levemente diferente, mas no geral, havia mais movimento do que na
Yoshinkan. Quando fui pela primeira vez lá depois de meu internato na Yoshinkan
Hombu, as pessoas estavam literalmente correndo em círculos ao meu redor.
Depois de algum tempo, eu me acostumei a isso e entrei na dança.
Se é verdade que Kisshomaru Ueshiba reduziu o número de técnicas que seu
pai ensinou, então sou grato a ele, pois parece que sobrou mais do que o
suficiente. O Doshu Kisshomaru demonstrava um vasto repertório de técnicas
diferentes em uma única aula. Quantas mais você quer?
Enquanto eu posso entender porque alguns consideram os ataques encontrados
na Aikikai geralmente mais suave e atemis
às vezes menos realista do que em outros lugares, não tenho a certeza que o
argumento se sustenta sob análise. Quem pode dizer que um soco poderoso que
pode quebrar-lhe os dentes é mais efetivo (no contexto de treinamento no dojo)
que um gesto das mãos ou um toque intencionado a alertar o uke para a abertura de um possível atemi?

Kenji Shimizu da Tendokan dizia que devemos ‘encontrar as técnicas dentro
do movimento’ e isso me parece uma abordagem sensata. O tempo perdido na
concentração de um soco ou na força para segurar poderia ser melhor aproveitado
no aprendizado de como mover-se, se o movimento é seu objetivo. Mas há,
certamente, espaço para ambas abordagens.
Os exercícios de desenvolvimento do Ki de Koichi Tohei me pareceram ótimos
para aquecimento, aumento do equilíbrio e da concentração. A quase completa
ausência de lesões no Ki Society é por si um testemunho positivo de seu método
de treino, a não ser que é claro, que se tenha pervertido o significado do
aikido para contar lesões como evidências de efetividade. Eu não aceito as
críticas de que os ensinamentos de Tohei são superficiais, com ele sempre dizia
para não aceitarmos seus princípios intelectualmente, mas que possamos
trabalha-los por nossa conta através do treinamento.
Aqueles que ridicularizam o treinamento do Ki geralmente possuem pequena ou
nenhuma experiência no sistema de Tohei, embora eu ouso dizer que suas próprias
críticas à outras escolas (nas quais ele não é o único) tenha atraído muito da artilharia
direcionada ao seu caminho.
Eu me lembro de um incidente engraçado numa comemoração do dojo quando
alguém perguntou a Tohei se ele poderia mover a xícara de chá com seu Ki. ‘Certamente
eu posso’, respondeu ele e se esticou até alcançar a xícara com sua mão. ‘Mente
e corpo são um só’, complementou ele. Que eu me lembre, ele nunca alegou
conseguir lançar alguém apenas com seu Ki, desacompanhado de seu corpo.
Evidentemente, cada sistema de treinamento poderia afirmar que é completo
por si só, e eu não estou necessariamente advogando pela mistura de todos eles.
Apenas minhas próprias circunstâncias têm me levado a fazer isso até certo
ponto. Aparentemente isso tem funcionado para mim e para meus alunos também. Nenhum
grande desastre parece acontecer quando encaramos cada diferente sistema como
parte de algo maior.
Temos que observar as diferentes personalidades dos grandes senseis para
indentificarmos de onde vem o que fazem. Talvez uma área em que falhamos no Ocidente
é no tempo que esperamos que esse processo leve. Os japoneses parecem mais
confortáveis com a idéia de passar muitos anos, senão décadas em apenas uma
escola antes que você possa compreende-la adequadamente.
É uma lástima quando o rank ou outras questões ‘políticas’ forçam os alunos
a fazer uma escolha entre diferentes abordagens, ao invés de aceitar sem
prejuízo o que cada uma tem a oferecer. As pessoas deviam se considerar
sortudas se elas encontram um tipo de treinamento que se adequa ao seu temperamento.
Um mapa teórico do ‘temperamento marcial’ (‘MT Chart’ de Lynch, patente
pendente) com Madre Teresa a Leste e Mike Tyson a Oeste, pode ser útil para
mostrar as personalidades e temperamentos extremamente diferentes que existem
por ai, e para ajudar alguns a decidir onde estão na linha. Contudo, uma mapa
desses seria muito errôneo se aplicado sem a referencia filosófica de O-Sensei.
Ele seria unidimensional e tedioso como a maioria das teorias sobre
efetividade. Deve haver uma linha adicional Norte-Sul representando o potencial
humano do indivíduo – uma teia espiritual para uma trama física e emocional.
Há um caminho a ser seguido se queremos buscar os objetivos do aikido, o qual não é diferente dos objetivos de nenhum dos ensinamentos seriamente preocupados com a evolução mental e espiritual do homem. O objetivo é um conhecimento unitivo dos princípios divinos, uma intuição direta da realidade espiritual e da consciência da relação entre o homem e o universo. É descobrir quem somos.
Evidentemente, quanto mais há do ego individual, menos haverá desse
conhecimento profundo. O que explica porque, ao querermos ser fortes e proteger
nossos egos, fazemos pouco progresso no amor e compaixão. Ao invés de
reconhecermos nossa ignorância do que realmente importa e fazermos algum
esforço – por menor que seja – para corrigir isso, nós desperdiçamos nosso
tempo discutindo aspectos técnicos, atolados no materialismo.
Buscamos no exterior maneiras mais efetivas de lutar ou de nos defendermos,
ao invés de buscar no interior uma hipótese mais apropriada na busca original
do ‘Caminho da Harmonia’.
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