segunda-feira, 5 de março de 2012

Entrevista com Hiroshi Tada


por Stanley Pranin
Aikido Journal #101 (1994)
Traduzido por Christiaan Oyens

AJ: Sensei, é verdade que o senhor começou a prática do aikido depois de ingressar na universidade de Waseda?
Tada Sensei: Sim, por causa da guerra não foi possível me inscrever no dojo até março de 1950.

Soube que o senhor treinou primeiro karate ao ingressar na universidade e só depois se sentiu atraído pelo aikido…
Na verdade não treinei muito karate, se bem que tenho um grau de dan. A princípio praticava ambas as artes, mas eu comecei a dedicar mais tempo ao aikido e ficou impossível de treinar as duas artes. Não é que eu tenha achado uma arte melhor que a outra, a questão era que admirava tanto Morihei Ueshiba Sensei. Eu o conhecia desde a minha infância.

Em 1942, eu estava em Shinkyo (hoje em dia Chan Chun, Manchuria), mas tinha acabado de perder a apresentação de Ueshiba Sensei na famosa Décima Exibição de Artes Marciais da universidade de Kenkoku. Meu primo, que é um ano mais velho do que eu, me disse que foi uma demonstração fantástica. Aparentemente quase ninguém conseguia receber ukemi de Ueshiba Sensei. Não estavam apenas sendo arremessados, era como se estivessem sendo eletrocutados por uma grande descarga elétrica.

Na quarta edição do Aikido Tankyu [uma publicação do Aikikai Hombu Dojo] o senhor escreveu que se sentia surpreso e impressionado pelos pensamentos inusitados de Ueshiba Sensei.
Eu tinha vinte anos ao ingressar no dojo e Sensei tinha sessenta e sete, uma diferença de uns quarenta e sete anos. Mas ele me arremessava com tanta facilidade, mesmo quando o atacava com toda força, que nesse sentido não se notava qualquer diferença de idade entre nós. Hoje acho isso compreensível, é claro.

De qualquer maneira, ele tinha uma presença singular e era repleto de uma energia incomum. Eu senti que tinha encontrado um verdadeiro especialista nas artes marciais.

Ingressou no Tempukai na mesma época que começou o aikido?
Quando ingressei no Hombu Dojo, a maioria dos praticantes eram membros do Tempukai ou do Nishikai. Claro que naquele momento só tinham seis ou sete pessoas no dojo. Entre eles estavam Keizo Yokoyama e seu irmão mais novo, Yusaku, ambos sendo estudantes da universidade de Hitotsubashi. Yusaku passou os últimos dias da guerra na academia naval e entrou na universidade após o termino da guerra. Foi ele que me apresentou ao Tempukai e ao Ichikukai. Depois outra pessoa me ensinou sobre os exercícios de jejum. Estas práticas, associadas aos ensinamentos de Morihei Ueshiba Sensei, formaram a base do meu treinamento.

Fui apresentado ao Tempukai em Junho do mesmo ano que ingressei no Aikikai. Tempu Nakamura Sensei ministrava reuniões de estudo mensais no Templo Gekkoden de Gokokuji. Igual ao Aikikai, o Tempukai pouco fazia para se promover publicamente e as pessoas se ingressavam no Tempukai ao serem apresentadas por outros membros. Eu conheci Tempu Sensei e depois de ouvir o que ele tinha a dizer, aderi imediatamente.

Ueshiba Sensei e Tempu Sensei se conheciam pessoalmente?
Sim. Foi antes de eu ter entrado no dojo, mas parece que tinham sido apresentados já há algum tempo pelo pai de Tadashi Abe, que era tanto um membro do Tempukai como aluno de Ueshiba Sensei. Inicialmente, o Tempukai era conhecido como Toitsu Tetsuigakkai (Sociedade Para o Estudo da União entre Medicina e Filosofia), e seu foco era a união entre mente e corpo. Eu participei de várias experiências do Tempu Sensei, então tive muito contato com ele.



Por quanto tempo foi membro ativo do Tempukai?
Até a minha ida para a Europa em outubro de 1964. Tempu Sensei faleceu em dezembro de 1968. Durante os meus seis anos na Europa, Morihei Ueshiba Sensei e Tempu Sensei, como o meu avô também, todos faleceram.

Ouvi falar que Tempu Sensei era um especialista com a espada.
Sim, ele era um expert em Zuihen-ryu battojutsu. Ele criou seu nome, Tempu, dos caracteres chineses “ten” e “pu” usados para escreverem a forma de Zuihen-ryu’s amatsukaze, algo em que ele era extremamente versado. Tempu Sensei era descendente do lorde Tachibana, o daimyo em Yanagawa. As artes marciais eram tão populares em Yanagawa quanto para o clã Saga de Kyushu, cuja reputação foi aclamada no livro intitulado: Hagakure [um texto clássico sobre o bushido, ditado por Tsunetomo Yamamoto em 1716]. O conteúdo singular das palestras de Tempu Sensei se dava pelo fato de ele falar mais de suas próprias experiências do que valorizar qualquer processo intelectual. Ueshiba Sensei agia da mesma forma. Idéias geradas no plano intelectual não têm o mesmo poder para atrair as pessoas.

Fale-nos, por favor, sobre o Ichikukai?
Um senhor chamado Tetsuju Ogura, era um dos últimos uchideshi de Tesshu Yamaoka. Durante o período Taisho, alunos e seguidores de Ogura junto com membros do clube de barcos de corrida da Universidade Imperial de Tókio (hoje Universidade de Tókio) criaram uma sociedade que praticava o misogi (ascetismo, rituais de purificação). Foi sob a direção de Masatetsu Inoue. No começo, o Ichikukai se congregava no dia 19 de cada mês, em comemoração à morte de Tesshu Yamaoka, falecido 19 de Julho, por isso o nome Ichikukai [ichiku em Japones significa “1 e 9,” i.e., 19].

Quando ingressei as reuniões aconteciam num dojo da era Taisho em Nogata-machi, Nakano. De quinta-feira a domingo nos sentávamos em seiza durante umas dez horas por dia, entoando uma passagem de um norito (prece Shinto), nos entregando completamente a esta tarefa. Era algo semelhante a recitar um mantra. Depois de passar por esta iniciação você se tornava um membro, aí podia freqüentar os encontros que ocorriam uma vez por mês, aos domingos. Ali eles faziam um exercício cântico chamado ichiman-barai, que consistia em tocar um sino de mão dez mil vezes. O som do sino não fica claro e pronunciado até o movimento da mão se tornar automático. Nas minhas aulas de aikido muitos dos meus alunos avançados fazem essa pratica.

O senhor treinou com o ken ou jo?
Houve um período em que O-Sensei ficava furioso com os alunos no dojo que tentavam treinar como o ken ou jo, e ele os proibia de usarem esta pratica. Porém, mais tarde ele começou a ensinar essas técnicas. Na minha infância eu tinha praticado arco e flecha japonesa que era tradição na minha família. Também pratiquei kendo no colégio. Isto foi durante a guerra, então não era uma disciplina esportiva. Depois quando comecei a treinar aikido eu praticava balançando o ken contra uma arvore perto da minha casa.

Treinamento individual é importante não importa a arte que você pratique. Você deve criar seu próprio programa de treinamento, começando por corrida. Aos vinte anos, e aos trinta também, eu me levantava todas as manhãs às 5:30 e corria uns quinze quilômetros. Após a corrida eu ia para casa e treinava golpeando com um bokken (espada de madeira) um monte de galhos amarrados. Naqueles tempos as casas em Jiyugaoka eram bem mais afastadas, então eu podia fazer barulho à vontade. Treinava usando a forma Jigen-ryu que tinha aprendido com O-Sensei em Iwama. Dizem que antigamente os guerreiros de Satsuma [em Kyushu] golpeavam trouxas de galhos dez mil vezes todos os dias, mas eu só conseguia umas quinhentas vezes, na melhor das hipóteses. No início, minhas mãos ficavam dormentes, mas depois de um tempo eu conseguia golpear uma arvore grande sem problemas. Fiz com que os meus alunos nas universidades de Waseda e Gakushuin treinassem desta forma. Acho este treino, um dos melhores para o aikido.

É claro que não é bom usar força física excessiva. Apenas segure o bokken, ou até um pedaço de pau feito de madeira verde suavemente e aperte com o dedo mindinho e o quarto dedo na hora do impacto. Será desenvolvida naturalmente a velocidade e a habilidade de apertar os dedos fechados corretamente. Este tipo de prática suave é importante, porque se você pratica usando força o tempo todo, você poderá acabar arremessando e aplicando as técnicas nas articulações com demasiada força, e isto pode ser perigoso.

É lamentável que o espaço limitado nos nossos dojos modernos não permita mais este tipo de treinamento. Eu gostaria de aos poucos reorganizar as coisas a fim de tornar estes treinos mais accessíveis.

O que acabo de descrever é uma forma básica de praticar golpes, mas o trabalho dos pés, o movimento das mãos e o desenvolvimento de ki através de kokyuho são os elementos importantes do treinamento individual.

O senhor estudou com Morihei Sensei e planejou seu método de treinamento baseado no que observou?
Sim. É muito importante observar o treinamento pessoal de seu professor nos mínimos detalhes e aprende-lo bem; caso contrário, você poderá tirar conclusões erradas e precipitadas e acabar perdendo seu tempo com treinos equivocados e sem sentido. De qualquer forma, você precisa revisar o que o seu professor lhe ensinou e criar algo que dê continuidade a estes ensinamentos, aí você deve praticar isto de novo e de novo até conseguir fazê-lo. Assim você criará seu próprio método de treinamento.

Eu acho que se você deseja se tornar um especialista no que faz – seja isto um tipo de arte marcial, esporte, algum tipo de arte ou o que for – você deve treinar pelo menos duas mil horas por ano quando você estiver com entre os vinte e quarenta anos. Isto significa cinco ou seis horas por dia. Depende de cada pessoa, mas a maioria do tempo será investida em treinamento individual. Depois de treinar só, você pode ir para o dojo para confirmar, experimentar e trabalhar tudo o que você adquiriu.

Usar uma arvore como seu parceiro num treino de aikido é uma excelente maneira de treinar com vigor porque você pode golpear com muito mais força do que se o seu parceiro fosse um ser humano. Não é apropriado treinar com força excessiva quando seu parceiro é uma pessoa, você deve usar esse tempo para desenvolver linhas corretas, limpas e afiadas.

O Ueshiba Sensei chegou a falar com o senhor sobre Daito-ryu ou Onisaburo Degushi?
Ueshiba Sensei falava sempre com muito respeito sobre seus professores, incluindo Takeda Sensei e o reverendo Onisaburo Degushi. O que me lembro claramente sobre seus discursos a respeito do Daito-ryu, é que ele o considerava um excelente método de treinamento. Após seus treinos, O-Sensei retornava com freqüência para o dojo e conversava sobre diversos assuntos.

Soube que Ueshiba Sensei falava sobre religião, especificamente sobre a religião Omoto…
Sim, e às vezes eu entendia perfeitamente o que ele estava dizendo, enquanto outras vezes me deixava completamente confuso. Mas ele também nos disse, “Isto é apenas a minha maneira de falar, eu quero que cada um de vocês interprete o que digo da sua própria maneira, explorem isto profundamente e transmitam isto em palavras apropriadas para os novos tempos”.

O aikido é mais proveitoso para a humanidade do que se possa crer, mesmo sob a ótica de alguém como eu que se especializa em aikido. Em 1952, após a minha formatura da universidade, todos os meus amigos ficaram surpresos com a minha decisão de me especializar em aikido, provavelmente porque foi tão perto do fim da guerra. Mas para mim, o aikido de Ueshiba Sensei abrange toda a essência da cultura japonesa e eu enxergava nesta arte algo que poderia ser muito importante para o Japão no futuro.

Na verdade, o aikido parece ter se estabelecido com mais solidez na Europa do no que no Japão. De qualquer maneira, para começar algo do zero, dentro de um novo contexto cultural, o treinamento de aikido se torna impossível sem uma clara compreensão do que seja o aikido e quais sejam suas metas de treinamento. Sem estes requisitos, seria como pular num trem sem saber sua direção ou destino. Em outras palavras, é importante traçar uma direção clara para os treinos de aikido desde o inicio. Quanto a decidir sobre métodos de treinamento, seria impraticável pedir a pessoas que querem treinar duas a três vezes por semana que treinem da mesma forma que as pessoas que querem treinar várias horas por dia. Parece-me adequado que cada um treine dentro do contexto de seu dia a dia. Porém, aqueles que desejam se tornar especialistas ou que querem explorar o aikido profundamente, precisam traçar um plano de onde estão indo e como irão fazer para chegar lá.

Não posso dizer o que é certo ou errado sobre métodos de treinamento. A maioria dos artistas marciais não está numa posição de ficar criticando as técnicas dos outros, pois em muitos casos, uma pessoa que aparenta ser fraca pode acabar demonstrando uma força extraordinária.

Poderia nos contar sobre sua organização na Itália?
O nome official do Itália Aikikai é L’Associazione di Cultura Tradizionale Giapponese (Associação de Cultura Tradicional Japonesa), e é reconhecida como uma organização oficial pelo Ministério da Cultura Italiano. Como o nome sugere, o aikido é praticado ali como uma forma de cultura tradicional. É evidente que o que eles fazem ali é diferente de qualquer prática esportiva. Acho que seria difícil para um japonês morando no Japão entender esta situação. Ou seja, eles praticam o aikido como uma forma de “meditação em movimento”. Em paises como Itália, Suíça e Alemanha, a frase “ki no renma” (cultivação do ki) está sendo usada no seu sentido original, em japonês.

É claro que nem todos nestes dojos praticam com essa abordagem em mente. Alguns preferem dar foco em se tornarem mais fortes para se defenderem num confronto físico; outros procuram uma sensação de bem estar; outros ainda desejam o prazer de praticarem uma coisa vinda de uma cultura diferente. Jovens aikidoistas que desejam virarem instrutores precisam de metas claras e coerentes que incluam todas estas motivações.

As artes marciais modernas japonesas são um caso especial. Mesmo sendo referidas com budo, na realidade foram incorporadas ao sistema educacional desde a era Meiji, e se supostamente representam o espírito do Japão tradicional, existem muitos casos em que certos aspectos espirituais foram descartados.

A restauração Meiji, que já ultrapassou a marca dos cem anos, é reconhecida por ser um momento onde a civilização ocidental teve grande influencia na cultura japonesa; mas foi também uma época em que os estudos ocidentais se popularizaram na Europa e Estados Unidos, junto com o conceito do inconsciente e a atenção dada aos poderes internos da mente. Estes se desenvolveram durante muito tempo e após a guerra ganharam notoriedade como medicina psiquiátrica e pesquisa terapêutica. Em contraste, o Japão adotou a política de “fora com o asiático, bem-vindo com o europeu”, uma tendência problemática que continua até hoje e provavelmente explica o número tão limitado de japoneses que compreendam a essência do aikido.

Mas, quando eu pratico no exterior, eu sinto realmente que existem alguns aspectos do treinamento que só os japoneses irão entender; não os métodos de treinamento em si, mas sim coisas de uma natureza mais generalizada. Coisas ditas em japonês, por exemplo, ou o ritmo determinado pelos modos japoneses são coisas que só uma pessoa que mora no Japão pode perceber. Kabuki e a dança Noh são outros exemplos. Minha percepção delas é diferente por ter morado no Japão. Acho que o aikido na Europa irá evoluir de forma apropriada para a Europa. Se a linguagem e formas de pensar e imaginar são diferentes, então formas de ficar em pé ou se mover também serão diferentes. Se você pensar na cor vermelha, seu corpo fará um movimento “vermelho”. A mente realmente exerce esta influência sobre o corpo. Estes aspectos são muito sutis, mas isto só poderá se tornar mais claro com uma analise minuciosa.

Sensei, o senhor parece ter absorvido e incorporado uma maneira aikidoista de pensar e de se mover adaptada para o seu corpo e seu dia a dia, tanto dentro, como fora do dojo. Poderia nos contar algo sobre sua rotina, talvez começando pela sua dieta?
Eu era completamente vegetariano quando estava na universidade. Eu também jejuava entre outras praticas rigorosas. Esse tipo de pratica seria muito difícil para mim agora, então minha dieta consiste em pão integral, macarrão de trigo-mouro e legumes acrescidos de algas marinhas, peixes e frutos do mar.

Não bebo bebidas alcoólicas exceto em ocasiões especiais como festivais ou reuniões de estudantes. Não fumo também. Você não consegue fazer um bom kokyuho se é fumante, e você também perde os aspectos mais sutis dos cinco sentidos. Você se torna incapaz de sentir as diferenças microscópicas. Se você não sente estas diferenças, você será incapaz de sentir os aspectos mais sutis do dia a dia. Isto é algo que é difícil de entender dentro das rotinas do seu estilo de vida, mas fica mais claro quando os seus sentidos estão aguçados, como por exemplo, quando se está recuperando de um jejum de três semanas. Beber álcool todo dia inviabiliza ter algum sentido de clareza, não importa o quanto você pense a respeito ou pratique.

Existem muitas formas de se comer. Pode se dizer que absorvemos o ki do universo através da nossa comida. Portanto, devemos considerar nossa ingestão de comida e água como sendo tão importante quanto respirar o ki do universo. Acho que a coisa mais importante é de se comer da mesma forma que O-Sensei sempre fazia, juntando as mãos em gratidão antes e após as refeições.

O senhor falou de Tesshu Yamaoka Sensei. Ele tinha alguns hábitos radicais…
Há várias anedotas sobre Tesshu Yamaoka. Alguns relatos de seus excessos o descrevem comendo dezenas de manju (bolinhos de farinha de arroz recheados de pasta de feijão adocicada) e ovos cozidos. Há muitas estórias sobre estes velhos heróis. Acho que eles não se preocupavam com coisas insignificantes como o que comiam.

Até a era Meiji, os japoneses dominavam o kokyuho e desenvolviam seu ki através de uma disciplina que começavam desde jovens. Nesse respeito, os japoneses hoje são completamente diferentes dos japoneses daquela época. Estou me referindo ao tipo de disciplina que começa no berço, por exemplo, na forma em que as crianças são educadas e nos hábitos familiares. O mesmo pode se dizer sobre os hábitos dos europeus, como as crianças que são levadas para a igreja mesmo que ainda não tenham a capacidade de entender a experiência. Então, educação também começa por lá desde cedo. Estas experiências provavelmente criam a verdadeira essência de uma pessoa. No Japão, antes da guerra, a lealdade e patriotismo descendentes do bushido eram equivalentes, de certo modo, à educação religiosa européia. Esta tradição há desaparecido e infelizmente não há nada que possa substituí-la. Acho que o aikido pode ser suficientemente forte para desempenhar este papel.

Sensei, o senhor escreveu que é importante conseguir treinar de uma forma científica…
Bom, como o corpo humano, num sentido, é um objeto físico, a maneira como movemos o nosso corpo deveria ser racional e científica. Budo sempre inclui em seu treinamento coisas como a forma correta de se sentar e ficar em pé, como também de se mover e de se manter atento. Enfatizam-se coisas como a maneira correta de se mover o corpo, ou como deslocar o peso, ou como rapidamente atingir a velocidade necessária para aplicar as técnicas. Certamente existem princípios que determinam estas coisas, e estes devem ser completamente compreendidos e empregados aos treinos.

O papel do professor é transmitir estes princípios para seus alunos, mas é difícil atingir isto através de explicações lógicas; a melhor maneira para os alunos aprenderem, é de forma gradual, através de seus corpos, sem que eles mesmos percebam. Por isso é que O-Sensei jamais explicava suas técnicas. Explicações com palavras são destinadas apenas para as orelhas. Portanto, simplesmente seguir os treinos da melhor maneira que você puder é a forma mais rápida de progredir. É errado pensar que você não irá conseguir fazer alguma coisa que nunca tenha experimentado só porque você não ‘a aprendeu’. “Científico” significa seguir uma série de princípios, correto? Então também significa a aplicação destes princípios. Portanto, mesmo que exista algo que você não conheça por experiência, você não deve criar a desculpa que não irá conseguir fazer esta coisa apenas porque ainda não a aprendeu.

Já que os métodos de ataque no dojo são predeterminados, o corpo poderá não reagir se de repente for atacado de uma forma diferente.

O-Sensei ensinou, por exemplo, que shomenuchi representa ataques em que a força do seu parceiro vem da frente, seja lá com uma lança, espada, faca ou um chute. Não se trata apenas de um ataque com seu tegatana (faca da mão). Você deve manter todas estas possibilidades em mente quando está treinando. Isto significa prestar atenção em como o seu corpo responde a cada uma destas coisas, e como você cria linhas e adapta o seu corpo. Além disso, você tem que cultivar um tipo de energia que crie um ambiente onde as pessoas possam realmente treinar e estejam “motivadas a treinar”. Mantener todos motivados num dojo requer energia kokyu.

Ouvi dizer que antes da Guerra e durante o período em Iwama, quando executando suwariwaza ikkyo, que é um das técnicas fundamentais do aikido, Ueshiba Sensei não permitia a oportunidade do seu oponente atacar, em vez disso ele iniciava o movimento projetando seu próprio ki…
Isto era conhecido como “cultivação do magnetismo.” Requer um senso aguçado de kokyu que chama o oponente como se este fosse um pedaço de metal sendo atraído por um imã. Existem três situações: Você se move primeiro; você e seu parceiro se movem simultaneamente; seu parceiro inicia o movimento. Na verdade a técnica é a mesma para todas estas situações e no fim, o importante é o tipo de estado interno que você mantém. Se você apenas olhar a forma externa, por exemplo, se você só vê a forma como defesa pessoal, então você não irá entender seu total significado. As técnicas têm a ver com o ki e não a simples interação de dois corpos físicos. Treinar é como um espelho refletindo a sua sensitividade com o ki. A clareza do espelho é o ponto mais importante.

Poderia falar um pouco sobre a diferença entre omote e ura?
Fisicamente falando, você usará uma técnica ura quando o seu parceiro estiver com seu pé de trás firmemente plantado. Quando seu pé de trás está em movimento, ou sem suporte, aí você irá usar uma técnica omote. Quando o teu kokyu passa livremente através do teu parceiro, você usa omote. É assim que uma técnica vira omote ou ura. Essa variação aparecia como freqüência nos ensinamentos de O-Sensei. O objetivo, porém, é de conseguir executar as técnicas em qualquer direção num raio de 360 graus. Omote e ura não foram criadas como formas pré-estabelecidas ou padrões; apenas representam a idéia de técnicas que variam livremente.

Sensei, o senhor tem decorado um currículo bem organizado de técnicas que aprendeu diretamente de O-Sensei…
Sim, tenho tido muita cuidado de manter tudo organizado, e isto forma a base do meu próprio programa de treinamento. Tento preservar não só as técnicas, mas o feeling geral das condições e a atmosfera de quando eu as aprendi. Por exemplo, eu tento preservar uma imagem que tenho das minhas idas para o dojo quando ia treinar com O-Sensei. Eu saio da minha casa em Jiyugaoka, desço a ladeira e pego a linha Toyoko para Shibuya, ali mudo para a linha Yamate Loop para Shinjuku, depois pego um bonde para Nukebenten (um santuário), aí entro no dojo onde aparece Ueshiba Sensei para demonstrar várias técnicas. Têm vários destes “filmes” ou visualizações na minha cabeça. Se é ikkyo, inclui todas as possíveis aplicações, variações e contra-ataques. Este tipo de coisa tem sido uma questão de bom senso para todos os praticantes de budo.

O termo “treinar por imagens” é muito difundido, mas tem origem num conceito oriental. É uma espécie de meditação. Você não pode esperar resultados sem se identificar com o que você está visualizando. Você deve se fundir com a paisagem. Aí você poderá ouvir os sons das técnicas e respiração de O-Sensei.

Dizem que quando O-Sensei estava com seus cinqüenta e poucos anos, suas técnicas efervesciam como água de uma fonte. Ele não ensinava mais as formas do Daito-ryu como as tinha aprendido de Sokaku Takeda. Todas as suas experiências de vida, desde a infância, culminaram numa torrente de movimentos que “borbulhavam como se nascendo de uma fonte”, como o próprio O-Sensei dizia. Era uma forma contínua de invenção e descoberta.

O-Sensei dizia que quando estava na sua melhor forma, uma imagem de seu oponente voando pelo ar lhe aparecia nos olhos, o próximo instante seu corpo se movia automaticamente e sua imagem se tornava realidade.

O senhor faz um esforço consciente de repassar para seus alunos suas memórias de O-Sensei e as coisas que com ele aprendeu?
Sim, é claro, mas muitas das historias e anedotas sobre Ueshiba Sensei são em realidade “do cume da montanha”, para cunhar uma frase, e tem a tendência de serem mal interpretadas a não ser que seu contexto seja devidamente explicado. Porém, é dito que saber coisas demais pode impedir o verdadeiro conhecimento. Quando estávamos aprendendo com O-Sensei, nos esforçamos ao máximo para absorver e digerir tudo, tentando copiá-lo durante anos. Temos uma expressão em japonês, “gokui ni kabureru”, para descrever alguém que tenta superar suas habilidades, e isto é algo que sempre desagrada os japoneses. Portanto, deve se ter cuidado ao retratar O-Sensei para os jovens, ou ao mostrar os seus vídeos. O-Sensei nos repreendia com severidade se apenas imitássemos as suas técnicas, dizendo, ‘Vocês não podem simplesmente imitar a forma externa do que faço, concentrem-se mais nos básicos!’.

Também temos as palavras “Aiki é amor”. Nós usamos frequentemente a palavra amor de uma maneira relativa, dizendo, “eu amo isto ou aquilo”, mas Sensei falava sobre o amor com um significado absoluto, como a fonte do universo. Consequentemente, enquanto podemos entender este “Amor” num nível intelectual, sem nos tornarmos “um” com o universo como Sensei fazia, não iremos ter uma compreensão dele como ele tinha. Quem sabe isto seja a “clareza” ou “estado de claridade” de que Sensei se referia. É claro que estas expressões tinham significado religioso também. As palestras de O-Sensei tinham uma sofisticação muito grande e eram de difícil compreensão.

A respeito do treinamento da cultivação do ki, é fácil para que uma pessoa tenha a noção de suas limitações físicas. É impossível levantar objetos extremamente pesados ou de correr numa velocidade extraordinária. Ao investigar o campo da mente, porém, no inicio é impossível para o individuo saber suas verdadeiras limitações ou para ele entender como se desenvolver. Uma pessoa não tem outra saída a não ser acompanhar o mais perto possível a sabedoria das eras, treinando com todo esmero nos métodos que lhe foram ensinados.

É uma área delicada, com a necessidade de treinar de forma racional e cientifica, ao mesmo tempo mantendo importantes ensinamentos tradicionais como a cultivação do ki.

Gostaria de lhe agradecer profundamente pelo seu tempo hoje em ajudar a confirmar alguns dos aspectos mais profundos do Aikido.

Perfil de Hiroshi Tada Shihan
Nascido em Dezembro de 1929 em Tókio. Matriculou-se no Ueshiba dojo enquanto estudava no departamento de direito da Universidade de Waseda. Depois de se formar em 1952, decidiu se tornar um especialista em Aikido e pesquisador da historia das artes marciais japonesas. Presentemente um nono dan shihan lecionando no Aikido Hombu Dojo, ele também dá aulas na Agencia de Defesa Pessoal; como também nas uiversidades de Gakushuin, Keio, Waseda, no templo Gessoji em Kichijoji, além de seu próprio dojo em Jiyugaoka, Tókio.

Em 1964 ele iniciou suas viagens para vários locais da Europa para instruir e disseminar o Aikido. Ele ajudou a fundar a Associação de Cultura Tradicional Japonesa/Italian Aikikai aonde mantém o cargo de Presidente Shihan. Voltou ao Japão em 1970 e desde então tem feito muitas viagens como instrutor pela Europa.

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