segunda-feira, 11 de abril de 2011

Aikido Doshu Kisshomaru Ueshiba (1921-1999)

Texto: Peter Goldsbury, I.A.F. Chairman
Tradução: Muryllo Amalio de Souza
Fonte: Aikido Journal (link aqui)


Kisshomaru Ueshiba, Doshu do Aikido, faleceu em uma segunda-feira, 4 de janeiro de 1999, aos 77 anos. A causa da morte foi insuficiência respiratória. A cerimônia otsuya (com o corpo presente) foi realizada no Hombu Dojo, Tokyo, na sexta-feira, 6 de janeiro, e no dia seguinte foi realizada o funeral, também no Hombu Dojo. Ambas as cerimônias foram freqüentadas por mais de 1000 pessoas, do Japão e do resto do mundo. Houve freqüência similar na cerimônia Farewell , a qual ocorreu em 17 de janeiro, no Salão Aoyama em Tóquio.





Kisshomaru Ueshiba


Kisshomaru Ueshiba nasceu em Ayabe, em 27 de junho de 1921, terceiro filho de Morihei Ueshiba e sua esposa Hatsu. Kisshomaru freqüentou a escola em Tóquio e graduou-se na faculdade de Política e Economia na prestigiada Universidade de Waseda. Desde muito cedo, Kisshomaru começou a praticar aikido e em torno de 1941 ele foi designado o sucessor do Fundador, Morihei Ueshiba. Quando tinha a idade aproximada de 20 anos, ele tornou-se o mais importante dos jovens instrutores do Hombu Dojo e com colegas como Kisaburo Osawa, Kisshomaru progrediu na prática da arte marcial desenvolvida por seu pai, a qual, em 1942, foi designada como ‘Aikido’. Durante os anos de guerra, o Santuário Aiki foi estabelecido em Iwama, Prefeitura de Ibaragi, e com ele o Iwama Dojo. O fundador dedicou muito do seu tempo a Iwama, deixando seu filho administrando os negócios em Tóquio. 




Em 1947, a Fundação Aikikai foi estabelecida e um ano depois foi oficialmente reconhecida pelo Ministério da Educação do Japão. Kisshomaru Ueshiba tornou-se Diretor Geral do Hombu Dojo e estabeleceu a estrutura organizacional que existe hoje. Os treinos regulares foram restritos ao Hombu Dojo em 1949, o que forçou Kisshomaru a também organizar esses treinos. Os anos pós-guerra viram o frenético desenvolvimento do Aikido no Japão e em outras partes do mundo, sendo Kisshomaru Ueshiba o principal responsável também por isso. Grupos de Aikido foram criados nas cidades e arredores, companhias e universidades em todo o Japão. Em 1958, Seigo Yamaguchi Shihan foi para Birmânia para ensinar aikido, e foi seguido por outros Shihans em outras partes do mundo, como Hiroshi Tada, Nobuyoshi Tamura, Yoshimitsu Yamada, Katsuaki Asai, Kazuo Chiba ans Seiichi Sugano, os quais ensinaram aikido como instrutores residentes na Europa, América e Austrália. Embora eles fossem discípulos diretos de O’ Sensei, todos esses instrutores respondiam primeiramente a Kisshomaru Ueshiba. 

Em 26 de abril de 1969, o Fundador do Aikido, Morihei Ueshiba, faleceu e Kisshomaru Ueshiba tornou-se o segundo Doshu do Aikido. Além de ministrar os treinos regulares no Hombu Dojo, Kisshomaru Ueshiba iniciou visitas às novas organizações de aikido “além-mar” no início de 1963, com uma visita aos Estados Unidos e ao Havaí. Logo após, como o novo Doshu, ele intensificou a freqüência de visitas no Japão e ao redor do mundo. O “All-Japan Annual Demonstration” tornou-se um evento regular no calendário do aikido japonês e a rede de federações, cada qual com sua própria demonstração anual, foi completada em 1972, com a inauguração da Federação Chugoku-Shikoku. 

A expansão do aikido ao redor do mundo atingiu um marco importante com a criação da Federação Internacional de Aikido (I.A.F.) em 1975. Doshu Kisshomaru Ueshiba tornou-se o primeiro presidente da federação. O congresso inaugural da I.A.F ocorreu em 1976, em Tóquio. 

Em complementação às visitas técnicas e demonstrações no Japão e resto do mundo, o Doshu ainda encontrou tempo para escrever sobre aikido. O primeiro livro, chamado simplesmenteAikido, foi publicado em 1957 e eu acredito que ainda está em produção. Aikido foi seguido por mais ou menos mais uma dúzia, incluindo uma biografia em 2 volumes sobre seu pai e um elegantemente produzido e escrito trabalho intitulado Aikido Shintei (Aikido em sua essência). 

Em 1987, em reconhecimento aos seus esforços para transmitir o aikido, o Doshu recebeu a Medalha Blue Ribbon do governo japonês. Esta honra foi a primeira de muitas dadas por governos e instituições no Japão e pelo mundo, culminando em 1994 com a visita ao Papa João Paulo Segundo em Roma e o recebimento da Ordem japonesa do Sagrado Tesouro no ano seguinte.

Em 1998, Doshu, então com 75 anos de idade, tornou-se cada vez mais fraco e deixou muita de sua responsabilidade com Hombu Dojo e Aikikai para seu filho Moriteru, o qual tornou-se o Diretor Geral do Hombu Dojo em 1986. Moriteru Ueshiba seguiu os passos de seu pai, assumindo os treinamentos no Hombu Dojo e as visitas a organizações de aikido no Japão e ao redor do mundo. Eventualmente, ele também substituía seu pai na direção da Aikikai. Apesar disso, o Doshu Ueshiba esforçou-se para estar presente na “All Japan Aikido Demonstration” em maio de 1998 e também no Encontro do comitê diretor da I.A.F. em 1998, onde, como Presidente, deveria ministrar a abertura e o fechamento, além de participar de algumas discussões.

Doshu Kisshomaru Ueshiba foi hospitalizado em dezembro de 1998. Infelizmente, como resultado do rápido declínio de sua saúde, esta parecia ser a última de várias internações. O Kagami-biraki estava aproximando-se, e todos que sabiam que o Doshu havia sido hospitalizado tinham esperança que ele reunisse mais uma vez sua extraordinária força e se recuperasse, mas isso não aconteceu. Ele faleceu silenciosamente, às 5 horas de 30 minutos da tarde de 4 de janeiro. 

Aikido como uma família internacional foi o destaque da cerimônia realizada no Salão Aoyama em 17 de janeiro de 1999, a qual foi acompanhada por muitas pessoas de fora do Japão. A cerimônia foi similar ao funeral real realizado em 7 de janeiro. Pastores proferiram orações e também uma breve biografia do Doshu e então todos os participantes foram até o kamiza, onde o retrato e as medalhas do Doshu foram dispostos. Nós tínhamos dado ramos de folhas de sakaki entregar como tamakushi (Sakaki é a planta cleyera japonesa, a qual tem papel central na mitologia japonesa. No Kojiki , ela foi usada para atrair o deus xintô do sol, Amaterasu, para a fora da caverna. A árvore sagrada é decorada com papel e dada para deuses shinto como tamakushi, ou oferenda sagrada.). Após isso, os participantes deram um breve cumprimento à esposa do Doshu e sua família e então saíram do salão. A cerimônia uma bastante simples e comovente comemoração de uma vida totalmente dedicada ao aikido. 

Algumas lembranças pessoais 

A primeira vez que encontrei o Doshu Kisshomaru Ueshiba em abril de 1974, quando ele visitou os Estados Unidos. Eu era um estudante na Universidade de Harvard e praticava aikido no dojo de Boston. Uma noite eu fui ao dojo, e fui avisado que um evento muito especial iria acontecer. Eu ainda era um iniciante e nunca havia encontrado qualquer instrutor altamente graduado, exceto Mitsunari Kanai, o chefe do dojo de Boston e meu próprio professor, responsável pela arte marcial e sua organização. 

Doshu ministrou um treino e a única coisa que eu lembro sobre seu aikido eram os enormes movimentos circulares e os ukes constantemente sendo arremessados. Após essa experiência, eu encontrei outros Shihan altamente graduados, como Osawa Kisaburi, que era o diretor geral do Hombu Dojo. Eu não encontrei o Doshu novamente até 1980, no Japão. Eu vim morar no Japão como instrutor na Universidade de Hiroshima e fiz devidamente minha primeira visita ao Hombu Dojo. Fui levado para encontrar o Doshu em sua casa, perto do Hombu Dojo. Naquele tempo, eu não falava japonês e então a conversa teve que ser traduzida. Doshu era muito simpático e cortês e me encorajou a treinar com afinco, mas também fazer meus alunos japoneses estudarem com afinco. Ele foi bastante honesto com o fato de que quando foi estudante em Waseda, ele não estudava muito. 

Eu tenho algumas vívidas memórias dos treinos do Doshu. Eu não lembro exatamente quando isso aconteceu, mas em uma ocasião eu estava treinando no Hombu. A técnica era Nikkyo e de repente lá estava o Doshu à minha frente. Eu, claramente, não estava fazendo a técnica corretamente e ele pediu que eu o atacasse. Eu estava acompanhando o movimento e a técnica foi aplicada bem lenta, delicada e firmemente – na medida certa. Sem palavras, sem gestos, apenas uma pequena reverência e um sorriso. Eu lembro da precisão de sua técnica e pensei que se o Doshu não tivesse iniciado no aikido, ele poderia ter se tornado um cirurgião. Em outra ocasião, a técnica era suwari waza kokyu ho. Novamente, Doshu se aproximou e viu que algo estava errado. Eu fui convidado a segurar seu pulso e mais uma vez o lento, delicado, firme, certamente inexorável, movimento, totalmente sem uso de força e totalmente efetivo. Eu acho que foi em um treino em uma noite de sexta feira no Hombu. O Doshu geralmente ensinada nas aulas de sexta à noite e muitos Shihans do Hombu vão à este treino. Em uma ocasião, Fujita Sensei foi meu par. Praticar com Fujita Sensei foi e sempre é revigorante e nesta ocasião eu lembro do Doshu vindo e assistindo nossa prática. Ele postou-se, ponderou por alguns minutos e então saiu com um sorriso. 

Em 1984, eu tive o prazer de encontrar o Doshu novamente. Esta ocasião foi um encontro da I.A.F. (Federação Internacional de Aikido) e fui avisado para comparecer ao Hombu Dojo às 9 horas da manhã. Eu fui lembrado por Moriteru Ueshiba para vestir traje formal e trazer alguns cartões de visita da Universidade de Hiroshima. Quando cheguei ao Hombu Dojo, fui recebido por Osawa Sensei, que me disse que eu deveria acompanhar o Doshu em uma visita formal a uma pessoa muito importante (cujo nome eu não revelarei). Um pouco mais tarde o Doshu apareceu e ele, Sr. Veneri (recém-eleito presidente da I.A.F.) e eu entramos no carro. Nós partimos e estávamos próximos à casa governamental para convidados do governo japonês , quando percebi que eu havia esquecido minha mala, contendo dinheiro, registro de estrangeiros, etc. no Hombu Dojo. Naquele período, o presidente da Coréia estava em uma controversa visita ao Japão, hospedado na casa de convidados. E a polícia estava fazendo algumas verificações aleatórias. No Japão é um crime grave se residentes estrangeiros não estiverem de posse de seus cartões de registro. E eu estava em pânico silencioso com a possibilidade da polícia nos parar, pois eles haviam pedido que muitos carros parassem. Eu queria saber se e como o Doshu lidaria com a situação de estar no carro com dois criminosos (Sr. Veneri cochichou que também havia esquecido seu passaporte), mas, felizmente, não fomos parados. Nenhuma palavra foi dita, mas a felicidade estava perceptível. Tenho certeza que o Doshu percebeu que havia algo errado. 

Estávamos indo para o centro de Tóquio, mas chegamos muito cedo para nosso compromisso. Saímos do carro, e o Doshu nos levou até uma cafeteria self-service. Ele mencionou para que sentássemos e então, para nossa perplexidade, ele pegou uma bandeja e dirigiu-se ao balcão. (Eu poderia imaginar alguns assistentes do Hombu indo à frente nesse ponto, mas acho que o Doshu estava feliz de fazê-lo por si mesmo.) Ele voltou à mesa com três xícaras de café. Ele sentou-se e tivemos uma conversa, desconsiderando as dificuldades de linguagem. Falamos sobre Sumo e o Doshu admitiu gostar muito de Sumo. Ele era um fã de Chiyonofuji, que era um campeão de Sumo muito famoso. Chiyonofuji era menor do que a média e sempre tinha que usar sua grande habilidade para vencer oponentes muito mais pesados. Por essa razão, ele havia mostrado interesse no aikido. Eu tinha muita sorte em poder conversar com o Doshu de maneira informal. Devido à sua alta posição, o Doshu habitualmente estava cercado de ajudantes e encontros eram sempre sérios e formais. Nesta ocasião nós encontramos o Doshu como Kisshomaru Sensei e não como Doshu. 

Como um oficial da I.A.F., eu encontrei o Doshu em muitas outras ocasiões e ele estava contente por podermos conversar em japonês. Ele sempre me lembrava e falava sobre amigos de aikido que ambos conhecíamos. Uma de suas maiores preocupações era com o desenvolvimento internacional do aikido, o qual muito promoveu, e em algumas ocasiões o Doshu ordenou-me a manter a I.A.F. no verdadeiro caminho, como ensinado pelo fundador. Embora a I.A.F. seja uma enorme organização e eu tenho certeza que ele não me daria tratamento especial, eu senti essa extrema, quase pessoal, responsabilidade que ele me deu, e a qual será muito difícil me permitir sair. Eu acho que ele sentiu profundamente as divisões e discórdias dentro do Aikido e entristeceu-se muito com a divergência entre ele e Koichi Tohei, por exemplo. 

Aikido tende a ser apresentado como uma roupa sem costuras, mas a realidade é diferente. Divisões têm sido endêmicas nas artes marciais e as divergências no aikido começaram a aparecer mesmo quando O’Sensei estava vivo. Entretanto, eu penso que Doshu sentiu que a discórdia de alguma forma manchou o tesouro que ele recebeu de O’Sensei e qual ele tinha trabalhado toda sua vida para transmitir. 

Meu último encontro com o Doshu foi no verão de 1998 em Tóquio. Tivemos um encontro da I.A.F. e fui fazer uma rápida visita a sua casa. Ele convidou-me a sentar e quis conversar. Infelizmente o tempo era curto e a conversa foi muito breve. Quando terminamos, ele agradeceu-me por ter despendido tempo para viajar todo o caminho entre Hiroshima e Tóquio. 

Desde quando comecei a praticar aikido em torno de 1970, nunca encontrei O’Sensei e às vezes invejava aqueles instrutores ou praticantes que o conheceram pessoalmente. Certamente, Morihei Ueshiba será sempre lembrado como o Fundador da arte, mas eu penso que seu filho Kisshomaru também será lembrado como a pessoa que transformou o Aikido em algo que é ao mesmo tempo uma arte marcial tradicional e também disponível para todos, japoneses ou estrangeiros. Ele teve a admirável responsabilidade de seguir os passos de um gênio: de receber de seu pai um precioso presente e desenvolvê-lo e transmitir esse presente para outras pessoas. Eu penso que, mais do que qualquer outra pessoa, Kisshomaru Ueshiba tem sido responsável pela vasta disseminação internacional do aikido, por permitir que pessoas como eu - um estudante na Inglaterra nos anos 60 quando ouvi falar a primeira vez sobre aikido - praticasse a arte e se tornasse um membro de uma imensa família internacional. Claro, há perigos na rápida expansão internacional de uma arte influenciada pela tradição japonesa. Estou certo que Kisshomaru Sensei estava ciente dos perigos e assumiu um calculado, porém acertado, risco.





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